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PEDRO BRAGA BRAZILIAN LITERATURE: This blog intends to be a space for literature’s spreading. A space to freely trade experiences and
point of views based on tolerance and respect for the differences, leading to a healthy interaction.
Literature, as a form of art, is, in fact, one way of social conscience expression, a way to organize our views about the world, to organize the chaos.
Here is a place where not only the literature production itself is embraced, but also, studies that have as a start point, the conception that an
analytical approach to a piece of literature deserves the scientific status: The Science of Literature, which is inserted within an ideological
science as defines by Bakhtin.



DA ESPECIFICIDADE DO LITERÁRIO

Extraído da Obra "O Riso e o Trágico" (Brasília: LGE Editora, 2010, p. 53-59)


 
     Existe diferença fundamental entre o texto poético e textos de outra natureza, jornalístico, por exemplo? O que distingue a linguagem da poesia do discurso puramente informativo? O que faz a especificidade da função poética com relação à função meramente referencial?
     A definição do que seja um texto literário implica a delimitação da noção de literatura. Ora, a fronteira do literário é algo extremamente móvel, variando segundo a época e segundo tal ou qual sistema de cultura. Toda cultura possui um conjunto de textos, os quais são transmissíveis seja oralmente (tradição oral), seja por escrito, seja ainda representado (expresso por um sistema de signos teatrais). Nem todos eles, porém, podem ser considerados literários. No atual momento histórico e no âmbito da nossa cultura, a especificidade do literário dever ser definida em razão de dois critérios (ou duas estruturas) fundamentais, categorias abstratas que se realizam na prática concreta da produção literária. O primeiro é a função estética do texto, que é dada pelo fato de ser mais significativo, isto é:  possuir uma elevada carga semântica, em nada inferior aos textos não literários. O que supõe ainda que o texto literário (que nunca se revela, nunca se dá a conhecer completamente) é codificado no mínimo em dois níveis: o primeiro sendo o da língua natural em que o autor se exprime; o segundo constituído por toda uma hierarquia de camadas de sentido complementares desconhecidas previamente pelo leitor, a quem incumbe em princípio a tarefa de penetrar os possíveis sentidos "ocultos". 
   É o máximo de significação possível que engendra o funcionamento literário do texto.
    Evidentemente, tais códigos complementares, ou significações superpostas, são ligados a uma época, a um gênero, a um estilo, seja de uma comunidade nacional, seja ainda de um pequeno grupo de pessoas (escolas, correntes etc.).
     O segundo critério de definição da literalidade diz respeito à or­ganização interna do texto. Codificado em vários níveis, o autor cria um distanciamento com relação à norma, esse grau zero da escrita, que seria um plano abstraio do discurso "ingênuo", "assepsiado" de qualquer ambivalência semântica ou incerteza de sentidos. Essa codificação tanto da estrutura quanto da linguagem implica mobilização de fatores conscientes, mas também inconscientes, que Roman Jakobson chama de "fenômenos de latência verbal intuitiva", presentes na produção da obra literária.2 Daí a possibilidade de o crítico ou o leitor atento descobrir aspectos da obra que escapara ao próprio autor.
     Ainda a propósito do grau zero, evidentemente um poema de Sousândrade ou de Mallarmé está com relação a ele infinitamente mais longe do que um texto puramente técnico.
     Isto posto e para ilustrar tais premissas teóricas, analisemos dois tipos de texto, ambos contendo basicamente e em substância (pelo menos aparentemente) a mesma informação. 
     Trata-se do "Poema Tirado de uma Notícia de Jornal", de Manuel Bandeira, e de um texto que poderia ser jornalístico, tirado, por ricochete desta feita, do poema em questão.
     O "Poema"
     "João Gostoso era carregador de feira-livre e mora no morro da Babilônia num barracão sem número
    Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
     Bebeu
     Cantou
     Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado."
    
     A notícia poderia, por exemplo, ser redigida desta maneira:
  "João Gostoso, domiciliado no morro da Babilônia, foi encon­trado morto por afogamento, em tal dia, na Lagoa Rodrigo de Freitas."
    Ou ainda assim:
  "O corpo do indivíduo conhecido pelo apelido de João Gostoso, residente no morro da Babilônia, foi encontrado no dia tal na Lagoa Rodrigo de Freitas. Tudo parece indicar tratar-se de um suicídio."
     Pode-se constatar de saída que a mensagem jornalística visa simplesmente transmitir uma informação (essa é antes de mais nada a sua vocação; mesmo na imprensa de opinião, ela constitui sempre o ponto de partida); enquanto o texto poético cria outros planos de significação — que seriam a função poética — se justapondo à dimensão informativa. Esses planos de significação a semiologia per­mite identificar, isolando por conseguinte as diferentes espécies de função do discurso.

     O epíteto dado à guisa de patronímico, ao mesmo tempo que revela a origem popular, logo modesta, do personagem (espécie de anti-herói do quotidiano), cujo nome de família, se formulado, seria insignificante numa sociedade ainda tida como fundada no mito da linhagem e na obsessão genealógica — exprime de igual modo a boa fortuna de João junto às mulheres: Gostoso. É evidente a gourmandise sexual desse adjetivo, a encher a boca numa explícita for­mulação de natureza erótica.

     O termo livre na composição feira-livre possui uma função re­tórica precisa que se situa para além do sentido global da aglutinação: a de ironia. E o anonimato, derivado da modesta condição social de João, é dado pelo sintagma "barracão sem número": morada sem número de um João sem nome, duplo aspecto de uma identidade im­precisa: ao nível da filiação e ao nível da localização. Por outro lado — e aí reside toda a contradição existencial do personagem — o nome do morro onde ele reside; "morro da Babilônia", evoca a ideia de uma certa grandeza (real do morro, e onírica do personagem João) numa oposição entre a vida, logo a realidade, e o sonho.
João porém ama a vida, ele tem alegria de viver, fato que é explicitado pela sequência verbal Bebeu, Cantou, Dançou — sequên­cia que suscita em nosso espírito menos a ideia de embriaguez que a de festa (em que afoga as mágoas) — o que determina (crono) lo­gicamente que a ação derradeira ("se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas") seja menos um "acidente" provocado pela ebriedade do que um ato desesperadamente premeditado por João, que se despede assim pateticamente da existência antes do suicídio: paradoxo de quem ama a vida, mas morre "voluntariamente": afogado. Os três verbos consecutivos induziam a um outro desfecho que não este — criando assim um efeito de surpresa face ao inesperado. As ações indicadas por esses verbos são enunciadas sumariamente, sem que se lhes siga alguma outra palavra; logo, trata-se de uma descrição que evita qualquer tipo de valoração (quer pela quantificação introduzida por um advérbio, quer pela qualidade, indicada por um substantivo ou um substantivo mais adjetivo). O que interessa manifestamente é o ato em si. A passagem enunciada pela quinta estrofe é feita sem transição, ou quase, o que sugere um ato contínuo, que é suscitado também pela homofonia (para não dizer rima) cantou/dançou/ se atirou. Quanto à terceira estrofe, ela pode se referir diretamente pela "rima", numa espécie de curto-circuito, ao penúltimo termo do poema: bebeu/morreu (afogado). Afoga as mágoas num primeiro momento, para depois afogar-se com elas. E aqui a ambiguidade vem à tona ao nível mesmo da escrita: morrer afogado equivaleria, neste caso, a morrer de fogo (bêbado):(a)fog(ad)o.
     Como se vê, os registros dos dois tipos de texto são intrinseca­mente diferentes. Não só os planos de significação, mas igualmen­te a "arquitetura das palavras" e a "plasticidade da língua", para utilizar as expressões de Baudelaire; o paralelismo sintático-semântico e o manejo retórico traem a função (e o efeito) estética(o) do "Poema", fazendo a especificidade do texto literário. Na infor­mação de tipo jornalístico, par contre, a função referencial possui a primazia, a sua forma está mais próxima do "grau zero", o distan­ciamento retórico reduzido.
     Outra questão importante e que se relaciona diretamente com o assunto ora discutido é a que chamaríamos de dialética de supera­ção em literatura. A sua análise permite não só uma melhor com­preensão dos mecanismos de evolução da histórica literária, como também do fenômeno das vanguardas artísticas. Em geral, a esclerose literária é uma manifestação no domínio da superestrutura de uma estagnação mais ampla, atingindo outras esferas, e que envolve o domínio social. Verifica-se então uma mudança das representações ideológicas profundas. Nesse momento, as duas estruturas (função estética e organização interna do texto) adotam novas formas de com­binação entre si, libertando-se dos antigos elos — subvertendo assim a escala de valores então em vigor, e estabelecendo uma nova axiologia. 
     Nesses períodos de crise, os textos literários "subversivos" procuram se demarcar do que comumente se considera literatura. Assiste-se em seguida a uma nova fase: a elaboração de um novo sistema de codificações ideológicas e estéticas, que engendra um novo tipo de relacionamento entre a organização do texto e a sua função. é essa dialética que permite a superação de um sistema significante que se estiola devido à baixa operada na sua capacidade informativa. O que quer dizer ademais que aquelas duas estruturas não são nem universais nem historicamente imutáveis.
     Os textos produzidos pelo movimento modernista de 22 consti­tuem um bom exemplo desse processo que se realiza no âmbito geral da cultura. Tomemos, à guisa de ilustração, apenas um, de um dos mais representativos expoentes daquele movimento: Oswald de Andrade. Trata-se do poema "As Quatro Gares".


     Nos anos vinte, essa poesia deve ter aparecido às elites bem pen­santes como uma brincadeira de mau-gosto. A sua "ingenuidade" aparente assume ares terrivelmente irônicos, numa oposição declarada à estética parnasiana, ao establishment literário da época em que fora escrita.     
     O seu sentido textual é a representação do que se convenciona chamar as quatro fases da vida do homem ("as quatro gares", por onde se passa) com as suas respectivas características psicológicas inerentes a cada uma delas: a infância, sempre lembrada nas suas sensações isoladas e designadas por substantivos investidos da pos­sibilidade de transmitir estados d'alma pelo simples fato de nomear objetos. É a etapa fenomenológica, onde nada se nos afigura estru­turado; de uma visão pré-lógica do mundo própria à infância. Já a adolescência, a vida "sentimental" começa a adquirir importância re­levante. E aqui a ambiguidade é comunicada pela ausência de notação de um signo prosódico: Aquele amor/nem me fale. Depen­dendo da entonação que se lhe der, pode tratar tanto de um fra­casso amoroso, como de uma lembrança carinhosamente conservada. Depois vem o formalismo da vida adulta expresso pelo anúncio do nascimento da filha. Anúncio banal de um nascimento feliz em um lar burguês (observe-se a recorrência ao clichê introduzido pela pa­lavra feliz). Finalmente, a tolerância que nos chega com a idade, e quando se passa a segundo plano, já que o sujeito da oração é "o netinho", ficando pressuposto (ou escamoteado) a figura do avô ou da avó. Fica assim fechado o ciclo da vida burguesa na sua es­treiteza doméstico-afetiva, e onde o tempo é um eterno recomeçar. Sem se falar na parte iconográfica que funciona, em relação ao texto escrito, ora como redundância, ora como simples alusão. Aliás, a retórica da imagem visual não é estranha à estética modernista.    
     Porém, a significação desse poema não se afere somente no âmbito textual. Ele é igualmente significativo «o plano extratextual, isto é: no da história da literatura no Brasil, como ruptura estética e inversão axiológica.    
     Haroldo de Campos com grande acuidade crítica reavalia a poé­tica oswaldiana, situando-a historicamente de maneira realmente dialética, nestes termos: "Qual a linguagem literária vigente quando se aprontou e desfechou a revolução poética oswaldiana? O Brasil in­telectual das primeiras décadas deste século, em torno à Semana de 22, era ainda um Brasil trabalhado pelos "mitos do bem dizer" (Má­rio da Silva Brito), no qual imperava o "patriotismo ornamental" (Antônio Cândido), da retórica tribunícia, contraparte de um regi­me oligárquico-patriarcal, que persiste República adentro."3    
     Os textos assim selecionados não o são irrevogavelmente. Algu­mas escolas não são, com efeito, ratificadas pela posteridade, poden­do, até mesmo, ser contestadas em sociedades cujo sistema social seja diferente. Por outro lado, os critérios' de seleção mudam, as relações desses critérios com a ideologia dominante mudam igualmen­te, assim como seus modos de aplicação. Esquematizando um pouco, pode-se dizer que não existe uma literalidade abstraía, nem uma beleza acima da sociedade. O que existe é que um certo número de textos são, numa determinada época e numa dada cultura, selecionados e valorizados como "belos", ou pelo menos merecedores de um julgamento estético, mesmo sendo este negativo. Esse mecanismo explica-se sociologicamente: em todos os tempos, as classes hegemônicas tiveram, direta ou indiretamente, poder sobre a definição das normas estéticas prevalecentes, o que não significa que o texto literá­rio não goze de autonomia, produzindo efeitos que escapam à juris­dição ideológica daquelas classes. Nesse sentido, os exemplos são numerosos.    
     O alcance teórico da definição do objeto do estudo literário re­side no fato de se poder então, a partir daí, reivindicar um estatuto científico para a investigação do fenômeno literário.

NOTAS:
1.          Cf. Y. Lotmann. "Sur le contenu et la structure du concept de littérature".    In: _.   Recherches Internacionais (87), 2/1976.
2.          Cf. Roman Jakobson, "Structures linguistiques subliminales en poésie". In_. Question de Poétique. Paris: Seuil,  1973.
3.          Haroldo de Campos. "Uma Poética da Radicalidade".  In: _.  Oswald de Andrade – Poesias Reunidas.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira /MEC, 1972.

2 comentários:

  1. Olá, caro Pedro. A título de sugestão, como se trata de parte de um livro de sua autoria, seria interessante mencionar as páginas desse texto aqui partilhado, para que leitores interessados possam citar seu conteúdo devidamente, como se pede nas normas da ABNT. Grata e parabéns por socializar este conteúdo tão importante para a área de Teoria da Literatura.

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    1. Obrigado, Andréa, pela sugestão. Aqui vai a citação segundo a ABNT do ensaio em questão":

      BRAGA, Pedro. "Da Especificidade do Literário". In:_ O Riso e o Trágico. Brasília: LGE Editora, 2010. 133 p., p. 53-59

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